sábado, 26 de março de 2011

O jogador que venceu (?) a UEFA

Jean-Marc Bosman em seus dias de football card

Os fãs de futebol se acostumaram a conviver com a divulgação das somas acumuladas pelos considerados melhores jogadores de futebol da atualidade. O argentino Lionel Messi nadou em 33 milhões de Euros ao longo de 2010, somados o contrato com o Barcelona, os prêmios e a sua imagem publicitária. David Beckham, que pouco joga mas ainda enfeita, ultrapassou os 30 milhões. Wayne Rooney ganha algo como 200 mil libras por semana, levando em consideração somente o que o Manchester United paga. Ainda que representantes de uma extremidade bastante reduzida da grande massa de atletas que milita profissionalmente no futebol, estes que foram citados e tantas outras estrelas do esporte mais popular de um dos dois mundo com representação no Planeta Terra (o outro mundo é o dos Estados Unidos da América), tem em comum uma dívida profissional e moral que eles ou desconhecem ou preferem simular desconhecimento. Pois há aproximadamente uma semana, veio à luz a existência presente de um ex-jogador belga, de nome Jean-Marc Bosman, o homem que foi a face pública do fim da lei do passe no continente europeu e que não muitos anos depois, tornar-se-ia global. Hoje, depois dos anos em que ele se degladiou inicialmente contra o clube que detinha seu passe, depois com a Union Royale Belge des Societes de Football Association, (URBSFA, que também tem uma versão do nome em holandês) e então com a própria UEFA, Bosman vive com uma pensão de 800 euros concedida pelo governo belga, enfrenta uma batalha contra o alcoolismo e, para garantir a manutenção de seus proventos, não pode morar com sua segunda esposa e os dois filhos, o mais jovem com apenas cinco meses. Isso que seu nome virou lei e o trabalho dos jogadores profissionais foi humanizado graças a sua luta. Mas a vida de Bosman, contudo, tornou-o uma triste figura entre os rostos sorridentes de comerciais da Nike, de empresários multimilionários e de torcedores cegos pela sede de vitórias em campo. Resumo da ópera para que se compreenda a situação presente de Bosman. Em 1988, aos 24 anos e cinco temporadas no clube que o revelou, o Royal Standard de Liège, foi comprado por outro clube da cidade, o Royal Football Club de Liège. Finalizada sua segunda temporada no RFC, Bosman recebeu uma proposta de renovação pouco usual: contrato de um ano com um salário de 30 mil Francos belgas, o que significava uma redução de 45 mil Francos em relação ao que ganhava anteriormente. O jogador obviamente não aceitou o oferecimento e ficou sem contrato. Atleta mediano que era, tendo se destacado muito jovem nas seleções de base de seu país e a ela pouco retornado enquanto profissional, o futebol de Bosman não despertou a cobiça de grandes clubes europeus – àquela época centrados na Itália e na Espanha. A proposta de transferência veio do pequeno USL Dunkerque e, em princípio, fechava com o desejo de todas as partes envolvidas. Entretanto, quando a transferência do passe estava para ser assinada, o RFC Liège recuou e aumentou significativamente o valor de Bosman. Desconheço o valor original, mas o final deveria ser de 12 milhões de francos belgas. Sem recursos para bancar o preço inflacionado, o Dunkerque desistiu do negócio e o jogador estava proibido de exercer sua profissão pois o passe estava preso mesmo com o contrato com o clube encerrado. Inconformado, Bosman foi aos tribuinais. Sob a tutela de um caríssimo advogado, argumentou que como cidadão da União Europeia, ele possuía o direito a “liberdade de movimento” dentro da UE se ele desejasse encontrar trabalho (Artigo 48 do Tratado de Roma, hoje Artigo 39 do Tratado da União Europeia). Foram cinco anos de batalha judicial, que encerraram com a vitória de Bosman na Corte Europeia de Justiça. Tal vitória, porém, foi a ruína para ele. Enquanto os futebolistas europeus tinham muito para celebrar pois a lei do passe estava extinta, Jean-Marc Bosman representava a personificação do satanás para os clubes, o homem que havia acabado com as prerrogativas de propriedade que até então recaíam sobre os jogadores, especialmente aqueles que ficavam sem contrato e não raramente sem trabalho. Enquanto lutava na Justiça, ele atuou em clubes inexpressivos da França (em condições normais talvez não conseguisse mais que isso), mas com o processo legal encerrado sua carreira foi junto definitivamente. Afinal, que clube contrataria um jogador que atuou tão pungentemente contra os interesses do empregador? Hoje, adaptados a realidade pós-Bosman, os clubes investem em contratos mais longos, impõe multas rescisórias astronômicas e não padecem de traumas, ao contrário do protagonista dessa história. Também a legislação atual não acabou com o vampirismo no futebol, uma vez que os chamados agentes FIFA entraram no jogo dos lucros infinitos como maiores beneficiários. Ao final de tudo, Jean-Marc Bosman teve sua carreira destruída não apenas pelo que fez, mas por quem ele era enquanto jogador. Fosse um Messi ou um Cristiano Ronaldo, possivelmente sua carreira não teria sido encerrada pois haveria uma fila de clubes da elite mundial do futebol buscando a qualquer preço o fechamento de um contrato certamente vantajoso para ambas as partes. Bosman era apenas um meio-campista belga, que talvez nunca fosse lembrado caso não tivesse dado a cara a bater em nome de tantos que não se mostram ainda hoje dignos de seus esforços. A propósito, o Brasil teve seu Bosman muito antes de Bosman. Seu nome: Afonso Celso Garcia Reis, mais conhecido como Afonsinho (para conhecer a história desse jogador, recomendo o texto de Plínio Sgarbi, ‘Prezado amigo Afonsinho', em http://recantodasletras.uol.com.br/biografias/63946).

quinta-feira, 10 de março de 2011

Copa do Terceiro Mundo FIFA


Joseph Blatter, presidente da FIFA, é homenageado pela imprensa britânica

A ‘vitória’ russa na escolha da sede para a Copa do Mundo de 2018 foi vista com severas ressalvas pela principal concorrente derrotada, no caso a Inglaterra. Sem saber para onde ir, a imprensa inglesa destilou a humilhação da derrota acusando a FIFA de vender a competição para Rússia. MaFIFA foi a manchete do The Mirror no dia seguinte a derrota, ilustrada pelo foto do aperto de mãos entre Joseph Blatter e o premiê russo Vladimir Putin. Já o Daily Mail, usando os mesmos caracteres da trilogia ‘O poderoso chefão’ (The Godfather), em homenagem a Blatter estampou como manchete The Oddfather, seguido pelo subtítulo “Copa do Mundo... um troféu negociado por duas famílias da Máfia”. A despeito de uma leve empáfia britânica, que dava como certa a escolha da Inglaterra como país-sede, é certo que a eleição da Rússia deve ser vista com no mínimo alguma estranheza. Afinal, a terra da rainha, se preciso fosse, poderia sediar uma Copa do Mundo amanhã mesmo. Era só avisar. Todos os estádios estão prontos e as exigências de infraestrutura impostas pela FIFA já estão lá pois trata-se de um destino turístico clássico tanto para fãs de futebol como para fãs de tantas outras coisas que o país oferece, especialmente no verão. Porém, perguntar “por que a Rússia?” implica repetir a mesma questão, substituindo Rússia por África do Sul e Brasil. Que estranha coesão é essa que está fazendo da Copa do Mundo um evento a ser organizado por países subdesenvolvidos e, inevitavelmente, lotados de problemas sociais aparentemente insolúveis? Talvez a resposta esteja na Copa da Alemanha, ocorrida em 2006. Pois seu comitê organizador peitou a FIFA e disse simplesmente não para algumas de suas exigências estapafúrdias. Presidente do comitê, Franz Beckenbauer mandou a Federação Internacional pastar em dois casos: no primeiro, refutou a ideia de construir um novo estádio em Dortmund, perante a existência do Signal Iduna Park, templo do futebol alemão, e também porque o povo foi às ruas protestar contra uma obra cara e absolutamente inútil. Reformas foram feitas e o estádio serviu perfeitamente à Copa. No segundo caso, o Estádio Olímpico de Berlin, segundo a FIFA, não deveria ser usado por conta de sua associação às Olimpíadas de 1936. Beckenbauer disse que o estádio iria ser uma das sedes. A FIFA voltou a carga, impondo uma remodelação da fachada para reduzir a associação. Mais uma vez o Kayser disse não e a Berlin sediou jogos da Copa. Vale dizer que a Alianz Arena, o único estádio construído para a competição, aconteceu porque a população de Munique a aprovou através de um plebiscito. Caso contrário, o estádio que muda de cor não existiria.
É aqui que se chega ao ponto: a FIFA, como empresa capitalista que se tornou, não quer ser desafiada e sabe que países subservientes com seus governantes derramadores de verbas públicas e seus dirigentes esportivos puxa-sacos e covardes dirão sim de joelhos a todas obrigações por ela impostas, mesmo as mais inconsequentes, se for levado em consideração o longo prazo. O caso sul-africano já é realidade. Dos dez estádios usados na Copa, seis foram especialmente construídos para o torneio. Entre reformas e construções, o Estado gastou em torno de 2,6 bilhões de dólares e agora não tem ideia do que fazer com os chamados ‘elefantes brancos’. Dois exemplos são os mais dramáticos: o estádio Green Point, em Cape Town, está cogitado para ser demolido; o Polokwane, na paupérrima província de Limpopo, exige US$ 2 milhões anuais apenas para manutenção e serve para quase nada. O Brasil terá possivelmente estádios novos e caros em lugares como Brasília e Manaus, que servirão para sediar grandes clássicos, caso de Ceilândia x Gama e Rio Negro x Solimões após o final do torneio. Isso sem falar que Minas Gerais e Rio de Janeiro não terão estádios decentes para os dois próximos campeonatos brasileiros por conta da reforma do Mineirão e da re-reforma do Maracanã.
De volta à Rússia, os prováveis novos estádios não terão final menos trágico. Pois apesar de alguns clubes terem conquistado recente projeção no cenário europeu graças ao dinheiro dos bilionários do espólio da extinta União Soviética – CSKA Moscou, Rubin Kazan e FC Zenit São Petersburgo (que não contrata jogadores negros) são os exemplos mais bem acabados -, a maioria das agremiações sofre com falta de público e débitos impagáveis. Ao final da temporada 2010/2011, o FC Saturn abandonou a Premier League Russa em função um dívida de aproximadamente 20 milhões de euros. No mesmo período, a FC Amkar foi também aceitou o rebaixamento por uma dívida próxima aos cinco milhões de euros, mas foi salvo na última hora e jogara a longa temporada 2011/2012 de 18 meses, assim elaborada para que a Rússia consiga adequar-se ao calendário europeu ocidental. O mais incrível é que os dois clubes imediatamente selecionados para substituírem o Saturn por suas colocações na segunda divisão negaram o ascenso por não terem condições financeiras para bancar as exigências da Federação Russa de Futebol e a vaga caiu no colo do quinto colocado, o Krasnodar. Com tais condições internas, praças esportivas padrão Copa do Mundo para quê e para quem?
Mas a FIFA tem uma desculpa socialmente correta na ponta de sua língua de serpente: a realização de uma Copa do Mundo traz benefícios inegáveis para os países-sede, caso das obrigatórias melhorias no transporte público (na África do Sul não aconteceu isso) e nos serviços considerados essenciais, caso da saúde e do saneamento básico (na África do Sul isso também não aconteceu). Mas mesmo que tais melhorias tenham lugar, elas não poderiam ocorrer sem a tal Copa do Mundo FIFA?

Parte das informações contidas nessa publicação foram encontradas no blog do jornalista da ESPN Mauro Cézar Pereira (citando outro jornalista da mesma rede, Gerd Wenzel) e nas edições 288 e 289 da revista When Saturday Comes.